fundamentos

NO PRINCÍPIO, UM SONHO

E foi numa sala capitular, com lágrimas nos olhos de algumas, que a decisão de encerrar o projeto de Vida Religiosa Inserida no Rincão foi tomada. As Irmãs Filhas de Maria Santíssima do Horto, mais precisamente Ir. Esmeralda Correa, Ir. Elena Ferronato e eu, animadas pelo desejo de viver a nossa vida religiosa mais junto ao povo, iniciamos esta experiência no ano de 1996 e lá permanecemos até 1999, quando o projeto foi encerrado.

A comunidade do Rincão nos foi apresentada pelo Padre Pedro Bortollini, na época diretor do Amparo Santa Cruz. Ele conhecia bem a realidade do bairro que de belos sítios para repouso da população mais abastada, há tempos atrás também havia sido recanto de pequenos agricultores, passou depois a receber um contingente de excluídos das estruturas sócio-econômicas de vários outros bairros periféricos de Porto Alegre, formando vilas populares que configuravam, desta forma, recortes urbanos constitutivos dos países subdesenvolvidos.

Por três anos e meio, atendemos à Comunidade Sagrado Coração de Jesus, hoje Paróquia Dom Orione. Coordenamos a Pastoral da Criança na Paróquia da Vila Nova e no Rincão, fundamos núcleos que se tornaram sedes das atuais comunidades católicas. No campo social, participamos ativamente das lutas da comunidade no Orçamento Participativo, conquistamos, metro a metro, o asfalto da Estrada Afonso Lourenço Mariante, a água encanada, a luz elétrica, a escola do Rincão, entre outras demandas.

Numa das Vilas situadas no Rincão, o Loteamento Mariante, ajudamos na luta pela regularização de terrenos e criamos junto a um grupo de mulheres a Associação de Mulheres Nossa Senhora Aparecida, cujo maior feito foi a construção da "Creche Nossa Senhora Aparecida". Com essa entidade, conquistamos convênios e condições para o funcionamento da primeira creche da comunidade do Rincão e, assim, passamos a atender diariamente as crianças antes atendidas mensalmente pela Pastoral da Criança.

Foi justamente neste momento de conquistas que recebemos a decisão do encerramento da comunidade das Irmãs; já não eram as mesmas irmãs que haviam iniciado o projeto, a Ir. Esmeralda Correia havia sido transferida para Goiás e depois dela a Ir. Elena Ferronato, também para outra comunidade de Goiás. Minhas malas estavam prontas e nelas o meu desânimo... Comigo carregava a insatisfação da decisão capitular e amargava uma retransferência para Belém Novo. Tudo parecia escuro até que em meio a muitas conversas e lamentos foi me foi sugerido pela Ir. Ângela Pientznauer, superiora da comunidade de Belém Novo, continuar marcando presença duas vezes por semana na comunidade do Rincão, mais precisamente na Creche Nossa Senhora Aparecida, que havia sido inaugurada pouco antes de minha transferência. E foi num destes dias, estando eu presente ali, que um grupo de mulheres da recente ocupação do Sertão II, procurou-me pedindo que fosse ver de perto a ocupação e os problemas enfrentados por elas... Não fui num primeiro convite! E tentei escapar uma segunda vez até que me rendi aos apelos insistentes daquelas mulheres buscando ajuda, e que, sem saber, estavam me ajudando a transformar desânimo e frieza em esperança e solidariedade.

Acredito firmemente, que o Espírito de Deus, é mesmo vento incessante que sopra onde e como quer, e foi este Espírito que me conduziu naquela tarde de março. Cheguei ao Sertão II pela primeira vez no dia 29 de Março de 1999. Após circular por algumas "casas" entrei na casa da Rosa e do Zé, era aniversário da Rosa e graças a esse fato eu sou lembrada, ano a ano, do dia em que cheguei pela primeira vez ao Sertão, como se eu passasse a fazer aniversário junto dela.

A realidade era realmente desumana, sendo uma região de ocupação recente, caracterizava-se pela total ausência de serviços e equipamentos sociais públicos, inclusive de saneamento básico. As pessoas moravam em barracas, ninguém tinha banheiro, não havia estrada, nem água, nem luz e nem nada, só terra! Quem sabe, alguma vontade de buscar uma vida mais digna. Por beberem água da sanga e não terem condições mínimas de higiene e saúde, as pessoas ficaram doentes e algumas foram vitimadas por hepatite: esse foi o pedido de socorro daquele grupo de mulheres! Com elas gritamos mais forte por socorro ao Posto de Saúde que tomou algumas providências emergenciais, dentre elas a colocação de uma caixa d'água comunitária, para que, pelo menos, as pessoas pudessem beber água potável.

Dali em diante, junto ao José Ramos, a Rosa Cândida Silva, a Adriana Assis da Silva e a outras mulheres da comunidade, começamos fazer a pesagem das crianças usando a metodologia da Pastoral da Criança. Várias estavam abaixo do peso, desnutridas... a fome era uma realidade muito próxima. Começamos a articulação para fazer um sopão, atividade que no início acontecia uma vez por semana, depois duas, e mais a frente, com a adesão do Padre Paulo Martins, três vezes por semana. Conseguimos a multimistura com o pessoal da Pastoral da Criança da Lomba do Pinheiro e assim, iniciamos uma luta contra a fome e a desnutrição das crianças, das famílias... Este foi nosso primeiro desafio: acabar com a fome.

O tempo passou e continuamos insistentemente mantendo aquelas atividades quase assistencialistas, e por saber disso, questionávamos também a nossa prática: Como envolver mais as pessoas? Como trabalhá-las? O que fazer para promover a saída daquela situação de miséria? Vale a pena continuar fazendo o que fazemos? O que queremos mesmo com a nossa ação? E como tentativa de encontrar respostas, além da participação no Orçamento Participativo (OP), que pouco ou nada faria de efetivo, pois se tratava de uma área irregular, surgiu a ideia de construir um espaço para recreação com as crianças. Tal ideia não teve muita ressonância e foi guardada por muitos meses como algo quase impossível de ser realizado.

Ir. Raquel Pena Pinto, FMH